segunda-feira, julho 31, 2006

Uatu

Olhar que tudo toca sem sentir. Não se deixa envolver pelos sedutores véus da paisagem nocturna. Plana sobre o ruído difuso, respira o ar abafado, mas não se deixa contagiar, não se permite fazer parte desse mundo de encantamento e mistério. Mas ainda que no seu intimo anseie ser pedra não deixa de sentir que nesse pairar sobre a multidão encontra mais do que espera, é superado pelo turbilhão. Algo que lhe é roubado e devolvido. Algo parece insistir para que não permaneça mudo quando apenas pode observar.
Uatu. Pacto de inércia. E eis que os humanos invadem o seu peito com gestos e danças que lhe arrancam as lágrimas à força. Persistir é comovê-lo.
Uatu nunca soube aceitar a sua condição de vigia. Um pequeno sopro e o pacto é quebrado. Aquele pequeno segredo guardado abriu o lacre que dissolveu no vento.
Uatu agradece em silêncio do brilho que cintila do fundo negro dos seus olhos.
Luis V.

domingo, julho 30, 2006

Fortaleza


No mais recôndito de mim, último reduto, fortaleza de ser, nesse abrigo de todas as trovoadas e tempestades, perco-me ainda nesse olhar cintilante, abraço morno e meigo, sorriso de ternura e carinho. Condenado a essa clausura do meu sentir, porta fechada para todo o pensar e agir, barreira impenetrável que asfixia todo o passar para o lado de lá. Mesmo sem ar, vive, e mesmo assim brilha. Mesmo assim refulge, dança em pontas de pés, arde, queima devagar. Acorda-me em segredo pelo meio da noite, vem ao de leve sussurrar-me ao ouvido, atira-me para lá dos meus sonhos. Poder fechar os olhos, poder sonhar. Poupar ao peito mais este encantamento. Poder ser surdo para este gritar. E... Amputar ao vento o bater contra os rostos? Mutilar a chuva que torrencialmente nos enche as lágrimas? Dissolver os fios da aurora para não mais os sentir espreitar por entre as portadas das janelas? Acordar é... respirar.
Luis V.

Como o ar

Porque o cansaço que te invade e toma conta dos teus membros, é reflexo da força com que invadiste o mundo até este momento. Como o ar que se inspira para a seguir expirar.
Luis V.

Para não mais me rever neste sentir


Para não mais me rever neste sentir. Doentio. Podre. Putrefacto.
Porque os dias outrora tecidos a fios de luz solar são agora abafados por uma claustrofobia que consome todo o brilhar. Suga-nos o ser sem hesitar e parece idolatrar o vazio que fica no seu lugar. Forças ocultas e obscuras orquestraram este doer, o acaso não seria tão cruel. Quero acordar. Quero luz e mar, o riso da Beatriz espalhado pela areia,... poder colhê-lo a cada grão. Vê-la desenhar os seus pequenos gestos (do mais espontâneo ao mais ensaiado) nessa vastidão, nessa atmosfera pura e limpa que transpira do seu habitat natural.
Saber-me sobejamente ultrapassado por tudo isto, um peso morto, estéril, impotente.
Acreditar que não se é nada perante a força das marés, saber que não se sabe sequer como remar, é saber-me também doente, podre, putrefacto.
Luis V.

terça-feira, julho 11, 2006

Wires

You got wires, going in
You got wires, coming out of your skin
You got tears, making tracks
I got tears, that are scared of the facts

Running down corridors
Through automatic doors
Got to get to you, got to see this through
I see hope is here, in a plastic box
I've seen christmas lights, reflect in your eyes

You got wires, going in
You got wires, coming out of your skin
There's dry blood, on your wrist
Your dry blood, on my fingertip

Running down corridors
Through automatic doors
Got to get to you, got to see this through
First night of your life, curled up on your own
Looking at you now, you would never know

I see it in your eyes
I see it in your eyes
You'll be alright
I see it in your eyes
I see it in your eyes
You'll be alright
Alright

Running ... down corridors, through, automatic doors,
Got to get to you, got to see this through,
I see hope is here, in a plastic box,
I've seen christmas lights, reflect in your eyes,

Down corridors, through automatic doors,
Got to get to you, got to see this through,
First night of your life, curled up on your own,
Looking at you now, you would never know

song by: Athlete


terça-feira, julho 04, 2006

Para ti, que contemplas antes de te ver


Para mim serás sempre a mulher à janela do quadro de Dali. Ensinaste-me a contemplar a vida tal como o mar, com fascínio e humildade, querendo abraçar com o olhar essa vastidão que nos surpreende e deslumbra no mais intempestivo do existir, mas sem perder de vista a terra que me sustém.
Imagino o rosto dessa mulher. Um sorriso terno, que expressa simultaneamente gratidão e reconforto, e um olhar que sem o atraiçoar revela ansiedade e preocupação. Expressão da entrega a uma inquietação interior que se reencontra como dádiva de um existir que não se possui, porque antes de mais se dá. Um ser que antes de se ver contempla. Antes de se sentir abre-se ao horizonte, que abraça e cuida, recebendo-se apenas nesse abraçar, nesse cuidar.
Dedico-te a memória das minhas lágrimas, os meus sorrisos, as quedas e o sacudir a poeira, a força com que estendo o braço e o olhar que me volta a erguer, cada suspiro, cada arrepio, porque ser comovido é ser movido com..., e sem ti não passaria de massa inerte, que talvez fosse apta a sobreviver porque sabe devorar, mas que não sabe receber porque não sabe sentir. A ti te dedico em hino essa vitória, essa conquista do mundo por sabê-lo acolher dentro de nós. Toda a beleza e grandeza que daí resulta é um hino a ti. mulher-mundo, mãe-terra-mar-olhar.
Tão cúmplice neste sentir como ninguém, tão irmã de armas nesta batalha sem vencidos como só tu.
Só queria erguer um monumento à tua altura. Digno desse teu contemplar, tão sôfrego de ternura quanto de nuvens e céu. Poder nunca desiludir o teu olhar e vê-lo rejubilar em cada gesto.
Abraçar-te até ao eterno, aconchegar-te com um leite morno e beijar-te a testa. Boa Noite.

Luis V.

É preciso imaginar Sísifo feliz


Já todos compreenderam que Sísifo é o herói absurdo. É-o tanto pelas suas paixões como pelo seu tormento. O seu desprezo pelos deuses, o seu ódio pela morte e a sua paixão pela vida valeram-lhe esse suplício indizível, em que o seu ser se emprega em nada terminar. É o preço que é necessário pagar pelas paixões desta terra. Não nos dizem nada sobre Sísifo nos infernos. Os mitos são feitos para que a imaginação os anime. Neste, vê-se simplesmente todo o esforço de um corpo tenso, que se esforça por erguer a enorme pedra, rolá-la e ajudá-la a levar a cabo a subida cem vezes recomeçada; vê-se o rosto crispado, a face colada à pedra, o socorro de um ombro que recebe o choque dessa massa coberta de barro, de um pé que a escora, os braços que de novo empurram, a segurança bem humana de duas mãos cheias de terra. No termo desse longo esforço, medido pelo espaço sem céu e pelo tempo sem profundidade, a finalidade está atingida. Sísifo vê então a pedra resvalar em poucos instantes para esse mundo inferior, de onde será preciso trazê-la de novo para os cimos. E desce outra vez à planície.
É durante este regresso, esta pausa, que Sísifo me interessa. Um rosto que sofre tão perto das pedras já é, ele próprio, pedra! Vejo esse homem descer outra vez, com um andar pesado mas igual, para o tormento cujo fim nunca conhecerá. Essa hora que é como uma respiração e que regressa, com tanta certeza como a sua desgraça, essa hora é a da consciência. Em cada um desses instantes em que ele abandona os cumes e se enterra a pouco e pouco nos covis dos deuses, Sísifo é superior ao seu destino. É mais forte do que o seu rochedo.
Se este mito é trágico, é porque o seu herói é consciente. Onde estaria, com efeito, a sua tortura se a cada passo a esperança de conseguir o ajudasse? O operário de hoje trabalha todos os dias da sua vida nas mesmas tarefas, e esse destino não é menos absurdo. Mas só é trágico nos raros momentos em que ele se torna consciente. Sísifo, proletário dos deuses, impotente e revoltado, conhece toda a extensão da sua miserável condição: é nela que ele pensa durante a sua descida. A clarividência que devia fazer o seu tormento consome ao mesmo tempo a sua vitória. Não há destino que não se transcenda pelo desprezo.
Se a descida se faz assim, em certos dias, na dor, pode também fazer-se na alegria. (...)

A própria luta para atingir os píncaros basta para encher um coração de homem. É preciso imaginar Sísifo feliz.

Albert Camus, O Mito de Sísifo

segunda-feira, julho 03, 2006

Indifference


I will light the match this mornin, so I wont be alone
Watch as she lies silent, for soon night will be gone
Oh, I will stand arms outstretched, pretend Im free to roam
Oh, I will make my way, through, one more day in hell...
How much difference does it make
How much difference does it make, yeah...
I will hold the candle till it burns up my arm
Oh, Ill keep takin punches until their will grows tired
Oh, I will stare the sun down until my eyes go blind hey,
I wont change direction, and I wont change my mind
How much difference does it make
How much difference does it make...how much difference...
Ill swallow poison, until I grow immune
I will scream my lungs out till it fills this room
How much difference
How much difference does it make

song by: Pearl Jam

Sinto-me


Aconteceu o que me parecia já impossível. Apaixonei-me. Apaixonei-me ainda mais pela vida, pelo mundo que me rodeia, pela coreografia das folhas nas árvores e pelo gesto que desenham na atmosfera quando o vento as arranca da sua solidão por entre uma multidão cega, surda e muda, que parece já não saber sentir.
Neste momento, o ar quente traz-me mais notícias do que nunca, fazendo-me desejar crescer nesse sentir.
Sinto-me num permanente amanhecer de esperança acompanhado pelo sabor nostálgico do crepúsculo nos lábios.
Sinto-me tão vivo que só me apetece abrir os braços e sentir. Como uma antena. Sentir tudo à minha volta. A época dos muros e das muralhas que nos protegem das desilusões está no fim. O medo de desiludir e de ser desiludido está no fim. Quero abraçar. Afinal uma des-ilusão é um bálsamo para a consciência. Não há fronteiras para este sentir-me transbordar.
Sinto que já não preciso de espada nem de armadura.
Sinto-me imortal. Como se a Felicidade de que são tecidos os meus dias estivesse preparada para tudo sarar, ou deixar sangrar num uivo que desafia o vento e dança com a chuva.

Amanheço-me



Um café e um pastel de nata, entre o Oriente e a Utopia. Amanheço por entre a suave brisa da manhã. Agradeço pela grandeza de tudo isto enquanto observo pardais saltar de migalha em migalha. Rendo-me e abandono-me nesta grande orgia cósmica em que fazemos amor com o universo.
O TEMPO... sempre essa perigosa obcessão com o tempo. Sempre a querer fugir de encontro a ele, a querer ficar no tempo, na História, rumo à Eternidade. Nunca quis menos que a Divindade. Despido do industrial refugio-me no bater dos raios de sol que me aconselham calma e cuidado e me abraçam com a sofreguidão de um náufrago que chega por fim ao seu porto seguro. Quero-me como nunca antes, amo-me nos outros que me são e em todas as coisas que me rodeiam. Sem corridas. Chega de pressas. Pressa de fazer, de não fazer, sempre esse pêndulo do despacha-te e acelera o compasso. Chega de querer preencher o vazio, é hora de saborear o recheio de cada instante antes de tropeçar no seguinte. Um hino às lágrimas e aos arrepios que invadem sem ser convidados, que irrompem de onde não esperamos e que os aceitamos porque disponíveis para.... Chega de: «não tenho tempo para isto», «tenho que correr para aquilo».
Adoro as manhãs, a vitalidade pura que irradia de uma manhã e que se corrompe ao longo do dia até à noite. Já não há manhãs, apenas prelúdios. Tudo é prelúdio para algo, e em prelúdios se caminha até ao NADA. Enquanto o que vem a seguir é que é importante, o momento presente vai ser sempre recheado de pequenos nadas.
Só quando vir para além dos pequenos nadas e perceber que a escalada até ao nada é a nossa condição de humanos contra-tempos, e quando perceber que esses nadas são pouco mais que tudo. Só aí o presente transcende a dimensão de Saudade e Ânsia e se torna eterno.

Luis V.
Maio 05

Para ser grande sê inteiro

Para ser grande, sê inteiro:
nada teu exagera ou exclui.
Sê todo em cada coisa.
Põe quanto és no mínimo que fazes.
Assim em cada lago a lua toda brilha,
Porque alta vive.
Ricardo Reis, Odes

domingo, julho 02, 2006

sábado, julho 01, 2006

Pensar


Pensar incomoda como andar à chuva
E quando o vento cresce parece que chove mais...
Fernando Pessoa

Vida e Morte

«Não poderás vencer a morte. Mas impõe-lhe a vida como um bandarilheiro e verás que muitas vezes ela marra no vazio»
Vergílio Ferreira, Pensar

Insónia


O caminho para lá dos meus passos desdobra-se no vento por entre as penas. Tudo isto brilha de pôr-do-Sol mal adormecido, espraiado nos olhares que se passeiam para lá do infinito fervilhante que fulgorosamente nos fulmina. O fogo flamejante da forja em que nos fazemos.
Acordado de estrondo. Súbito sobressalto. Pleno de uma ânsia que invade pelas pontas dos pés. À espera do doce rapto de Morpheus, que teima em não vir. Respiro um ar pesado. Cheiro de pulmão incendiado, peito que se recusa a deixar de sentir.
Pálido de abismo que irrompe corpo adentro. Desafogado de ser frágil como uma agulha, mas vivo como um Deus, mais vivo que Deus. Pronunciando o seu nome beijado nas estrelas. Abraçado por saber que acolhe em seu próprio colo toda a solidão.
Impenetrável barreira para toda a embrieguez. A sede, a sede toma de invasão, arrasta, arranca arrasa, despedaça, oferece o caminho do tudo ou nada que logo se oferece como oferta irrecusável para aqueles que se querem vivos.
Recusar a diluição, o lento dissolver da consciência na efervescência do momento.
Agarra o instante com a força da eternidade, desacelera o lento cadenciar de um pêndulo que nos põe a dançar,... Há luz. Há palco, há pedaços de pó que giram em espiral, que se batem por tatuar o real, tingidos de um não-sei-quê de onírico.
Como o enlaçar de umas mãos, num amanhecer que se quer de um branco difuso, negando contornos, abolindo a definição. Madrugada de silêncio, névoa de sorriso tresmalhado por entre o cheiro a café...
Habita-me um ser mudo que me recuso a ouvir por não ter ouvido para isso, mas que me conhece desde o fundo indizível até ao amanhã, desde o vazio das cascas quebradas de um ovo deixado ao acaso, chocado pela vertigem de ser...
Luis V.

Cães Raivosos

Nietzsche dizia que cada um de nós tem dentro de si uma matilha de cães raivosos, sempre à espera do momento em que a mão que segura a trela comece a fraquejar para poderem sair em liberdade. Por isso não bebo...
Luis V.